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Leitores: O médico-ministro e o socorrista que não acredita

- 11/01/2024 - 9:50

Domingo, perto das duas horas da tarde, saídos de três dias de congresso, imersos numa realidade muito própria da vida interna de um Partido, onde se cruzam ministros, autarcas, militantes anónimos e figuras internacionais.

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Domingo, perto das duas horas da tarde, saídos de três dias de congresso, imersos numa realidade muito própria da vida interna de um Partido, onde se cruzam ministros, autarcas, militantes anónimos e figuras internacionais. Eu, o meu colega Tiago Soares Monteiro e a Daniela Morgadinho a preparar-nos para regressar ao ritmo de todos os dias.
O carro que nos havia de trazer à Beira Baixa está num estacionamento subterrâneo, numa zona onde já quase não havia outros.
A metros dali uma senhora era auxiliada por um casal, depois de se ter ferido numa queda que fazia com que o sangue corresse abundantemente do nariz e da boca.
«Têm lenços de papel?» perguntam-nos. A Daniela segurava com uma mão na caixa de toalhetes, enquanto ligava ao 112 e identificava o lugar: «parque subterrâneo da FIL, pavilhão 2.»
O casal dirige-se ao elevador à procura de ajuda rápida. A Daniela ajuda a senhora a sentar-se no próprio carro e continua a tentar estancar o sangue (preocupada com o facto acrescido de se tratar de uma doente oncológica).
Do elevador sai uma equipa de três socorristas da Cruz Vermelha que acompanhavam o congresso, um segurança privado e o casal.
Continuando a pensar na importância de ser vista por um médico, eu não tiro os olhos do espaço, à procura de alguém que o pudesse ser.
Três retardatários como nós saem do elevador, dirigindo-se a uma viatura a poucos passos de distância. O meu cérebro faz várias ligações numa fração de segundo. A primeira foi a de que uma das pessoas era o ministro da saúde que é médico. A segunda foi a das histórias que sei dele a propósito de fazer consultas voluntárias no Porto, quando não estava de serviço. A terceira foi a de saber do respeito que os médicos têm pelo próprio juramento de Hipócrates.
«Doutor- arrisquei- peço desculpa, mas está ali uma senhora que caiu…»
O casaco voa e o ministro também.
Pede luz, tranquiliza a senhora, mostra que o sangue tinha estancado e já está tudo bem.
Informado do historial oncológico, pergunta onde era seguida. 
«No IPO de Lisboa». «Muito bem tratada, senhor ministro»
«Pois, só aqueles que não conhecem o SNS é que dizem que ele trata mal as pessoas. Podem ligar ao 112 a cancelar?»
Ao ouvir isto, e a antecipar reações, soltei uma gargalhada.
O ministro pensa o mesmo, olha para trás e diz-me «Vai ter piada, não vai?»
O socorrista, embaraçado, estende o telefone: «estão a pedir para falar com o médico…»
Na gíria médica, a situação é explicada, com a característica voz e pronúncia, mas do 112 insistem e perguntam a identidade do médico.
Silêncio expectante de todos à volta do Ministro: «Eu digo-lhe, e não estou a brincar: Manuel Pizarro»
A ambulância desmarcada, a paciente descansada e o médico-ministro vai embora.
Contei a história do voluntariado.
«São do Porto?» Pergunta o vigilante.
«Não, somos de Castelo Branco», responde o Tiago.
«A sério? O meu pai é de Malpica do Tejo»
Acabamos à gargalhada.
Pelo meio da história, uma socorrista perguntava-se, nervosa, se o senhor ministro acharia que ela estava a fazer mal o seu trabalho; o seu colega confidenciava-me que conhecia a cara do médico; o terceiro socorrista, que segurava um telemóvel-lâmpada a iluminar a paciente, confessou que o ministro era muito simpático, muito diferente do que diziam dele; uma militante-paciente não acreditava que estava nas mãos do ministro que, a rir, a descansava enquanto lhe dizia que tinha muitas horas de urgência de experiência.
Eu ganhei uma história para vos contar, e o orgulho numa classe de pessoas-profissionais, que têm como primeira ideia e objetivo ajudar o próximo.
Viva o SNS!

«Exercerei a minha arte com consciência e dignidade. A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação. Mesmo após a morte do doente respeitarei os segredos que me tiver confiado. Manterei por todos os meios ao meu alcance, a honra e as nobres tradições da profissão médica.»
Juramento de Hipócrates

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JMarques
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