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Leitores: A ilusão da eutanásia

António Lourenço Marques - 21/09/2023 - 10:09

Sobre as más condições em que geralmente se morre em Portugal, há um panorama trágico que urge ultrapassar.

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Sobre as más condições em que geralmente se morre em Portugal, há um panorama trágico que urge ultrapassar. Para o caso, a Lei da Eutanásia nada contará e pode mesmo ser um entrave. Fundada em convicções, sempre discutíveis, centra-se, aparentemente, na defesa de um valor fundamental, que é a autonomia da pessoa doente. Mas fá-lo de uma forma limitada, sem apontar outras soluções. A autonomia, neste caso, não é completa, porque o pedido do doente tem de ser autorizado (claro, cumprindo os pressupostos da Lei) e o objeto da vontade, ou seja, a morte própria, tem de ser praticado por terceiros. Considero também indigno, é a minha opinião, implicar os médicos nessa execução, porque, além do mais, quebram o grito contra o “já não há nada a fazer”, que lhes compete.
O que é certo é que a vontade livre fica assim nas mãos de terceiros. Por outro lado, a própria vontade, em tais circunstâncias é vacilante. Pode mudar, e de forma subtil, por vários fatores: a condição social, o momento, o lugar, as respostas potenciais dos cuidados, a capacidade de adaptação, o amor em causa, etc.  Pela natureza das coisas, a autonomia, neste caso, não pode deixar de se ver diminuída. A autonomia não é um valor absoluto, todos o sabemos. Eu direi que nesta questão não há verdadeira autonomia, um dos cernes da defesa da Lei.
No entanto, este valor, efetivamente, é de uma importância enorme, e na Medicina deve estar sempre presente e respeitado. O doente tem de participar, o mais possível, na concretização do processo terapêutico escolhido para o seu caso. Digamos que é uma escolha partilhada, porque a indicação pertence a quem tem a competência desse saber. Idealmente, sempre que está capacitado, deve ser o doente a decidir sobre a aceitação da melhor prática que lhe é apresentada por quem de direito. Sem qualquer dúvida sobre este aspeto.
Falamos então da pessoa com uma doença grave, sem cura, cuja evolução determina a morte natural, mas que implica sofrimento, uma realidade subjetiva com visibilidade exterior, cuja vivência pode formar o desejo de antecipação do final natural da vida. O legislador tenta com uma lei resolver o problema.
O assunto é longo e não cabe num artigo. E há questões (esta é uma delas) que não têm respostas totais. A morte do indivíduo, necessária para a sobrevivência da espécie (nós estamos cá porque os nossos morreram), é um custo pessoal que nos pertence de forma inalienável. Julgo que ninguém está absolutamente seguro de que a solução da morte provocada por terceiros é inteira. Deixar a morte natural acontecer - estando presentes, solidariamente, em tudo o que isto tem de significado, e cuidando - já pode ter outro sentido. Esta última opção é uma via que tem as marcas da ciência e do humanismo. Verdadeiramente, nestas situações, a aplicação da Medicina, no estado atual da Arte, com o mesmo vigor e empenho com que se aplica quando se pretende o resultado da cura que é viável, pode ter uma resposta positiva do ponto de vista humano.  Porque a Medicina é ampla. Com uma história muito antiga, está em permanente progresso, e chegou, hoje, a importantes conquistas que contribuem substancialmente para a melhoria da vida das pessoas que adoecem, e em qualquer fase da doença: curando, quando é possível; aliviando, que é um imperativo; e sempre confortando.  A medicina vai até ao fim. A especialidade dos Cuidados Paliativos, os cuidados específicos no sofrimento das pessoas com doenças que determinam a morte natural, assumiu a envergadura de qualquer outra especialidade médica. Só que, na nossa organização, em Portugal, predominantemente arquitetada para a doença aguda, o cuidado apropriado do tempo do fim da vida com doença crónica (período variável) tem penetrado com muita dificuldade. A avaliação disponível que temos, é que num universo de cerca de 90 mil pessoas, necessitadas de Cuidados Paliativos, que morrem, anualmente, entre nós, menos de 30 mil têm acesso aos cuidados indicados pela Arte. Pensemos, por exemplo, que de todos os doentes com indicação para cuidados intensivos, em Portugal, só 30% teriam acesso! Seria um sonoro escândalo!
Em meados do século passado, os Cuidados Paliativos começaram no Reino Unido. No mesmo país, cerca de 20 anos depois, em 1987, ganharam o estatuto de especialidade médica. 
Portugal está atrasado. A primeira iniciativa concretizada com internamento para doentes terminais com cancro, data de 1992, no Hospital do Fundão. Portanto, 25 anos depois do pioneiro Reino Unido. O percurso, cá, cheio de embaraços. E só em 2014, a Ordem dos Médicos concluiu o primeiro passo do reconhecimento profissional, que foi a atribuição do grau de competência médica à Medicina Paliativa. Ora, sabendo que a Lei da Eutanásia é feita para um país em que esta condição básica, que é a universalidade do acesso aos Cuidados Paliativos, não está cumprida, tenho o direito de julgar que essa Lei é inoportuna. E mais. Acho mesmo que cria a ilusão de que estamos no caminho certo da solução do sofrimento dos doentes, com doenças incuráveis, que se aproximam da morte, quando, na realidade, de tudo o resto (que está universalmente consensualizado) para responder a esta questão, estão arredados, grosso modo, dois terços dos potenciais candidatos. Do meu ponto de vista, o meio político dominante tem dado ares de não ter convicções sobre o que verdadeiramente está em causa. Lamento!

António Lourenço Marques
Médico anestesista. Competência em Medicina Paliativa pela Ordem dos Médicos.

COMENTÁRIOS

José Costa
No ano passado
Tola seria minha pretensão querer por em causa o que este senhor doutor explanou, mas porque sou mesmo tolo, eu ponho mesmo em causa, não tudo o que explanou, mas penas uma parte que ele não explanou devidamente e que, dado ser uma abordagem um pouco extensa, não vou também explanar e vou cingir-me apenas a algo que me parece ser claro na Lei e que é: alguém vai ser obrigado a ser eutanasiado? Logo, a Lei irá funcionar apenas para quem a aceite e deseje. Que direito têm os outros de terem de se submeter às suas elaboradas retóricas, e de quem se opõe à legalização dessa prática devidamente acautelada conforme os quesitos que da Lei impendem? Senhor Doutor! fique descansado que não está previsto que alguém o obrigue a aceitar esse procedimento...