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Leitores: Separar o verdadeiro do virtual. A vida dos outros

Natanael Santos - 23/02/2023 - 10:19

Assistimos, nos dias de hoje, ao boom das redes sociais e da interação virtual, algo que o Covid-19 também contribuiu bastante para que acontecesse.

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Assistimos, nos dias de hoje, ao boom das redes sociais e da interação virtual, algo que o Covid-19 também contribuiu bastante para que acontecesse. Abrem-se, assim, novas possibilidades, formas de ver o mundo e relações humanas. No entanto, será que este processo apresenta apenas aspetos positivos? Talvez não. 
Não venho, de todo, apresentar a vinda da Skynet ou apregoar a crescente interação virtual como a decadência dos valores e dos costumes. Não venho afirmar nada disto porque este crescimento e desenvolvimento está associado ao crescimento e desenvolvimento tecnológico, que é, no geral, benéfico para o desenvolvimento dos sistemas humanos, sejam económicos, científicos ou sociais. Pois é, indubitavelmente, benéfico o facto de possuirmos um maior acesso a informação relevante e podermos entrar em contacto com qualquer pessoa em qualquer parte do mundo sem importar o momento. Dando um exemplo pessoal muito simples, como não tenho ninguém com quem jogar xadrez (um jogo que aprecio bastante) aqui na minha aldeia, jogo online contra outras pessoas do mundo inteiro, coisa que antes era impensável. 
Não obstante, um dos aspetos menos bons da evolução deste processo é a forma como nos tornámos uns fofoqueiros insensíveis. Começamos a encarar o paradoxo de «querermos saber tudo de todos ao mesmo tempo que não queremos saber de ninguém» como algo corriqueiro. Simplificando, parece que queremos saber todos os aspetos das vidas dos nossos vizinhos e conhecidos ao mais ínfimo detalhe, desde o que foi comido ao almoço ao outfit do dia e aos relacionamentos da pessoa; mas tornamo-nos frios com os nossos semelhantes ao ponto de nenhuma ação ter sentido se não for registada. Uma imagem que nestes dias me chocou muito foi um vídeo noticiado pela agência internacional de notícias Al Jazeera que mostrava uma rapariga moribunda que pedia ajuda e tinha um grupo de gente à volta que em vez de ajudar filmava o acontecimento; isto aconteceu na Índia, mas existem outros exemplos até no nosso país em casos de acidentes ou de Bullying escolar em que as reações dos espectadores presenciais é a mesma. Estamos tão vivos dentro do ecrã que ficamos dormentes no que toca ao mundo que nos rodeia. 
Parece que estamos muito focados em nós mesmos, mas na verdade perdemos tempo valioso nos aspetos fúteis das vidas dos outros que podia ser usado realmente em nós ou nos outros: podíamos estar a interagir presencialmente com outras pessoas, podíamos estar a ler, podíamos estar a fazer exercício físico, podíamos estar a estudar um curso ou tema que nos atrai, podíamos estar a construir-nos! Ou podíamos estar a fazer diferença, pois, contrariamente ao contraste atual de que ou tentas salvar o mundo ou entras em modo niilista e nada vale a pena, podemos ajudar as pessoas que estão ao alcance das nossas mãos e dar sentido ao um dia monótono. Porque, inclusive, existem milhares de associações e organizações no distrito de Castelo Branco, cada uma com um objetivo diferente, onde podemos ocupar algumas horas da semana com voluntariado. Eu acredito que devo ser solidariamente egotista, isto é, devo focar-me em mim mesmo, no meu crescimento pessoal e na minha própria vida, mas ajudando o meu próximo sempre que estiver ao meu alcance. 
De que nos importa saber a cor dos novos sapatos do vizinho se não conhecemos os nossos próprios limites? De que nos serve estar tão dentro dos nossos próprios universos digitais ao ponto de não vermos alguém a morrer à sede bem diante dos nossos olhos? Até porque nos tornamos hipócritas sem sequer nos apercebermos, visto que é habitual solidarizarmo-nos com determinadas causas que apresentamos nos nossos feeds das redes sociais de forma muito indignada e reivindicativa e depois no mundo real, no mundo que importa, nem uma petição sobre o tema assinamos. Esta dualidade moral apresenta-se-me, de sobremaneira, absurda. 
O mais triste é que depois destas imersões descontroladas vêm problemas psicológicos vários, uma vez que, como dizia Nietzsche, “quando olhas para o abismo, este olha para dentro de ti”. Parece que o mundo real e virtual se invertem e tudo perde a cor. 
Precisamos fazer ver aos nossos jovens a linha que separa o mundo verdadeiro do virtual, mostrar que existe todo um universo além do ecrã que vale a pena ser descoberto. Isto pode ser difícil, falando por mim, depois dos confinamentos, uma vez que fiz dois semestres e meio da licenciatura fechado em casa. No entanto, é preciso deixar claro que a internet, como um todo, é apenas uma ferramenta, seja de trabalho, social ou de entretenimento, mas não é a vida por inteiro. 

 

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