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Uma releitura na obra de Martins Correia

Maria João Fernandes - 20/04/2017 - 8:00

É preciso muito tempo para se aprender a ser jovem (Picasso). 

 

 

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É PRECISO MUITO TEMPO PARA SE APRENDER A SER JOVEM

 

UMA RELEITURA DA OBRA DE MARTINS CORREIA

 

“Não há arte moderna, não há arte antiga, não há senão leis eternas, reencarnadas (…).

René Huyghe, Os Poderes da Imagem.

 

“É preciso muito tempo para se aprender a ser jovem”, a epígrafe de Picasso que Martins Correia tinha gravada na parede do seu atelier e que desenhou, foi escolhida para título da exposição que lhe é dedicada no espaço CTT em Castelo Branco, comissariada pela autora deste texto, uma iniciativa conjunta da Câmara Municipal de Castelo Branco e do Museu Municipal Martins Correia da Golegã

Este título resume toda uma filosofia e todo um programa da arte moderna que o grande artista partilhava. Picasso, o maior expoente da arte moderna, de que a sua obra é quase um símbolo, dizia que levou toda a vida para conseguir pintar como uma criança. Por outro lado ele e os arautos da modernidade foram buscar à arte primitiva as raízes da arte moderna. A infância e a arte dos primitivos constituindo uma das essenciais fontes de inspiração da arte moderna, como expressão de uma inocência primeira e de uma original ligação ao inconsciente e aos arquétipos.

Depois de um relativo longo silêncio em que não tivemos muitas oportunidades de a apreciar, deslumbra-nos hoje com o fulgor do seu talento e da sua invenção a obra de Mestre Martins Correia para quem a Poesia era o grande motivo condutor do seu trabalho. O seu contributo para a arte contemporânea portuguesa em sintonia com grandes marcos da arte internacional, tem sido sublinhado pela crítica, unânime em reconhecer o génio e a singularidade do escultor que fundiu numa única expressão a ancestralidade e a contemporaneidade, a natureza e a civilização, a identidade portuguesa e a universalidade da cultura humana, o que apenas grandes Mestres, como Picasso ou Tàpies no século XX, conseguiram.

A obra de Martins Correia, uma das mais originais da segunda metade do século XX português, convida a uma releitura a partir do que podemos considerar os seus conteúdos temáticos fundamentais, na expressão do desenho, da pintura e da escultura, reunidos em diversos capítulos: “Rostos no Tempo” documentando a presença marcante do retrato, “O Povo de Amor Cantava” (título de um conjunto de esculturas desaparecido) que apresenta o vasto núcleo que dedicou à iconografia popular na sua relação com o lirismo, “O Ciclo do Cavalo” que se inspira em título homónimo de António Ramos Rosa sugerindo a vertente antropológica deste poderoso símbolo do imaginário e “O Poema do Corpo” que se desenvolve sob o signo do nu, com grande tradição nas artes plásticas. O último capítulo da exposição: “O Estilo e as Formas, Síntese Plástica” permite-nos constatar a evolução da linguagem do artista rumo a uma simplificação das formas à qual, como no caso de Almada Negreiros, pode ser dado um conteúdo poético e simbólico. Na vertente do retrato, os rostos esculpidos, mas também desenhados ou pintados transportam em si todos os medos e os mais remotos e audazes anseios, na simplicidade do seu abandono e na supremacia de uma ancestral energia que partilham com a natureza, as suas formas impolutas e mágicas, a poesia e a intensidade das suas cores elementares. Retratos de ilustres poetas contemporâneos do artista, de escritores, de conhecidos atores, teatralmente e em jeito de homenagem à volta do retrato em bronze de Amato Lusitano (1511-1568), o grande humanista europeu do Renascimento nascido em Castelo Branco e de cuja estátua, verdadeiro ícone da cidade, Martins Correia é autor.

A dimensão etnográfica do retrato está representada em peças como “Ultramarina” ou “Rapariga de Goa”, emblemáticas da mestria plástica de Martins Correia que parte de um padrão clássico para o desfazer no modo subversivo como emprega a cor e como destaca a forma num suporte inesperado e audacioso que integra a escultura e a completa. A sua vertente simbólica está patente em “Sonhadora”, “A Verticalidade” ou “Voando” onde o inovador ritmo da escultura em bronze policromado parece contrariar as leis da gravidade e da matéria que ascende apesar do seu forte enraizamento no espaço. E todas as formas desta linguagem compõem verdadeiramente as criaturas de um universo que se situa no tempo e em sintonia com a mágica floração de uma intemporal Primavera das formas e do espírito.

A iconografia popular na obra de Martins Correia associa-se à expressão da identidade cultural e civilizacional do povo português em relação com o lirismo, vertente essencial segundo Eduardo Lourenço para definir essa especificidade da cultura portuguesa. Justifica-se neste capítulo a homenagem a Camões que se traduz no tríptico com o seu nome e no busto em bronze que o acompanha, bem como a homenagem a D. Dinis, outra figura cimeira do lirismo português. O sentimento de pertença a um povo é acentuado, sendo que essa pertença ganha o sentido muito mais geral de pertença à humanidade cuja condição o artista poeta magistralmente interpreta criando uma linguagem plástica e simbólica original. À policromia da arte etrusca, grega e romana do eixo mediterrânico, ao academismo de uma expressão clássica junta-se a rudeza de acabamentos, a estética do fragmento que lhe conferem a marca da modernidade, como a relação inovadora com o suporte introduzida na arte moderna por Brancusi.

Ritmos verticais e horizontais cruzam-se para situar estas peças, marcos da presença da humanidade no espaço e no plano de uma verticalidade que aponta para a transcendência do tempo de que é símbolo a “Coluna Hippie” que abre a exposição. Espécie de padrão de uma descoberta dos novos territórios do humano em sintonia com os destinos do Cosmos. Na paleta de tons primários, vermelhos de fogo, azuis marítimos, amarelos solares, são índices da grande sinfonia dos elementos que está subjacente.

As peças que evocam o mar ou a religião, apontam componentes de um imaginário coletivo, enquanto outras, o Rei ou as figuras históricas associadas aos Descobrimentos na plasticidade das suas cores intensas e das suas formas rudes e sintéticas evocam a história ao modo cénico e teatral característico da arte de Martins Correia.

A estratificação da sociedade é sugerida nas figuras de um meio rural que simbolicamente gira à volta da figura de Maria da Guia, sua Mãe. A Demoiselle da Golegã estabelece o vínculo com a linguagem das formas da arte do século XX e com a sua figura tutelar Picasso sob cujo signo de inovação plástica a obra de Martins Correia parece ter-se desenvolvido. O alcance simbólico da arte de ambos abrange um arco temporal que vai dos primórdios da humanidade à vivência contemporânea restituindo-nos uma imagem do humano que detém a magia, a inocência e a exaltação de uma natureza em relação com a energia sagrada, o esplendor da origem.

A presença do cavalo é mais um elemento que na obra de Martins Correia realça o vínculo entre o real e o símbolo, a forma e o mito, polos que se conjugam para nos devolver uma imagem total da natureza e do humano, marca do génio de todo o grande artista. Figura essencial de uma antropologia do imaginário, emblema da velocidade, da fugacidade temporal e da capacidade de reunir polos antitéticos, como o dia e a noite, a terra e o ar, o espírito e a matéria, o cavalo é um símbolo solar por excelência. Da Golegã, sua terra de origem, de que é emblema, para o território aéreo e transcendente de que é por excelência a imagem, une na obra de Martins Correia, esplendidamente, o real e o imaginário sob o signo do espírito e de um humano total arrancado ao trágico destino da sua fatal precaridade.

A enigmática e perturbadora presença das formas do corpo sugere a poesia que Martins Correia praticou e chegou a reunir num volume. No soberbo conjunto de desenhos inéditos da coleção da filha, Elsa, que hoje podemos apreciar, afirma-se o vínculo simultâneo a uma disciplina do desenho assumida como fundadora e a marca inconfundível do escultor, que o leva, como aconteceu com Rodin ou Giacometti, a envolver no sintetismo do traço a sugestão do volume, ambos realçados pela irrupção das cores, verdadeira festa para os sentidos evoca o luxo da natureza nos voluptuosos matizes de uma paleta requintada e sensual.

Entre o visto e o entrevisto, a nudez feminina, na magia do traço e no halo luminoso da cor, no esplendor das formas surge como uma revelação, abre-nos as portas de uma nova realidade. Nos desenhos, pinturas e esculturas de Martins Correia o corpo torna-se uma metáfora da alma, o lugar geométrico onde se fundem os sonhos e os desejos numa única e insondável essência.

A simplificação formal a que assistimos em percursos tão icónicos da modernidade como os de Mondrian, Matisse ou Tàpies ou entre nós Almada que no Painel “Começar” (1968-1969) contém em si toda uma filosofia bastante complexa. A depuração e a síntese exigem o encontro da essencial natureza anímica e plástica das formas. É aí que a arte e a alma na célebre formulação de René Huyghe casam verdadeiramente as suas substâncias e formam um único domínio. Martins Correia que batizou uma das suas obras “síntese das formas”visava uma depuração plástica de sentido anímico, uma geometria plástica e simbólica com ênfase para o círculo, o quadrado, a elipse ou o retângulo, que uma paleta de cores puras e lisas acompanha. Realçam os vermelhos e os azuis, do fogo e da água, sugerindo outras dualidades simbólicas: o masculino e o feminino, o espírito e a matéria, a terra e o céu.

As formas nem sempre atingem esta depuração geométrica, estilizam-se segundo modelos orgânicos, alongam-se, cruzam-se, imbricam-se, crescem como as plantas ou as árvores em ritmos verticais, em círculos imitando o movimento dos planetas ou de meteóricos cometas, astros em torno de um sol ausente que parece alimentar este universo conferindo-lhe todo o poder, a energia cintilante do espírito e da vida, do espírito da vida. O artista filósofo, poeta e pensador define ele próprio na escultura com o título “construtivismo e expressionismo”, os estilos da modernidade que inspiraram o seu trabalho: o casamento da depuração intencional, de inspiração clássica, capaz de devolver às formas a sua essência plástica e a máxima capacidade do expressionismo, de inspiração romântica, de fazer emergir intensamente as mais profundas emoções características do humano. A chave formal da sua obra está nesta união a que deve acrescentar-se o arco temporal que transporta para o presente os vestígios do passado, promovendo uma espécie de arqueologia simbólica do humano. No seu estilo único, Martins Correia, abre-nos, na magia poética das suas formas e dos seus símbolos, no desenho, na pintura e na escultura, ao mesmo tempo a sedução da matéria e a sua audaz capacidade de transfiguração e alquímica transmutação, verdadeira conquista do eterno para além de todas as contingências do tempo e do espaço. Artista poeta, reúne numa mesma corrente os afluentes da poesia, da linha, da forma e da cor que se diluem em silêncio e música e convidam ao movimento e à dança, como se esta fosse o mais natural destino destas formas, destes traços e destas cores cheias de sol e da seiva de uma vida que regressa à sua original, mágica e eterna essência.

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