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Digressões Interiores: Em Coimbra mais me lembro de Castelo Branco

João Lourenço Roque - 10/08/2023 - 8:00

Volto aos arquivos da memória, resumindo mais uma das inúmeras histórias, reais ou imaginárias, que "correram mundo" nas aldeias sarzedenses.

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Volto aos arquivos da memória, resumindo mais uma das inúmeras histórias, reais ou imaginárias, que "correram mundo" nas aldeias sarzedenses. Desta vez, num relato que nos atira para os percalços - e tantos eram - da vida rural. Foi o caso daquele bom homem que viu o azar bater-lhe em grande quando, no caminho e na faina em que seguia, o carro se virou, ficando de rodas para o ar e os animais estatelados no chão. Aflito e impaciente por ajuda, apareceu-lhe um rapazote que "teve a lata" de perguntar: "Passa-se alguma coisa?" Irritado ou incrédulo com semelhante pergunta, não se conteve em responder áspero e afogueado: "Passa-se alguma coisa? Atão tu não vês o desastre..." Se fosse hoje, diríamos que felizmente não houve feridos e que a GNR tomou conta da ocorrência...

Naqueles tempos, que aparentemente tão longe ficaram, esta e outras peripécias davam aso a falatórios, "teatros" e risotas. Fosse onde fosse - nos Calvos, nas Teixugueiras, na Nave, na Lomba Chã, no Vale da Sertã e por aí fora - quase sempre a sina de ser apontado e "gozado" calhava aos mais simplórios ou desafortunados. Mas, na roda dos dias e dos anos, a sorte tantas vezes mudava, a pontos de chegar a hora em que alguns dos que mais reinavam se tornarem eles próprios o alvo do gozo e da reinação...Fazia-se justiça, mesmo sem sabermos que justiça era! Então, como hoje ainda acontece, era corrente a inclinação para nos rirmos do "mal", dentro de certos limites. Para não falar só dos outros, apresento-me como exemplo e "vítima" dessas tendências impulsivas e descontroladas. Ainda me lembro daquela vez em que, ao escorregar no lajedo perto do forno, caí de caravelas e desamparado na presença da minha cunhada Otília que ria a bom rir enquanto eu, meio "combalido" e envergonhado, tudo fazia para o mais depressa possível me levantar. Isto terá sido há meia dúzia de anos, quando muito. Ora, poucos dias antes de escrever esta crónica, a cena pouco mudou. Tinha ido a Castelo Branco e, ao encaminhar-me para o carro, estacionado numa praceta, as botas deslizaram no passeio molhado e traiçoeiro, por causa das folhas e das flores caídas, perto das "tílias", e em menos de nada estendi-me ao comprido, felizmente sem grandes mazelas. Não sei se alguém deu conta, mas se viram não se deram à bondade de me socorrer. Mal cheguei aos Calvos, meio atordoado, logo relatei o "desastre". A minha sobrinha Ana Paula, enfermeira distinta, sempre solícita e cuidadosa, prestou-me toda a atenção e quis saber tudo - que dores tinha ou não tinha, que incómodos sentia -, mas, de pergunta em pergunta na demorada consulta, creio que, por mais que tentasse (se é que tentou...), nunca deixou de rir. Em qualquer dos casos, embora algo azedo ou irritado, não levei a mal. No fim de contas, quantas vezes não terei eu feito o mesmo ou ainda pior...

Largo estes episódios e passo a outros "filmes" e sentimentos. Sei - todos sabemos - quão contagiante é, ou pode ser, a alegria, mesmo inesperada e desmedida. Mas confesso que, desde há vários anos a esta parte, mais me chama e contagia a tristeza. Ainda recentemente, numa das esplanadas em que mais me demoro em Coimbra, me senti atraído por uma mulher desconhecida que veio sentar-se numa mesa próxima da minha. Pareceu-me de idade indefinida, mas madura. Mais que bonita, diferente, misteriosa, estranha, interessante. Não me atrevi a pousar nela o meu olhar e o meu desejo, mas, de relance, vislumbrei a tristeza que lhe vagueava nos olhos, no rosto e nas mãos inquietas. Talvez esperasse por alguém que tardava em chegar ou que não atendia o telemóvel. Talvez sentisse a falta do próximo abraço ou o desencanto do último beijo. Nada lhe disse, que poderia eu dizer-lhe, mas bem gostaria de a ter conhecido. Ainda pensei aproximar-me, mas logo desisti de tão arriscada ou inútil tentação. É mais fácil meter conversa com pessoas alegres. As pessoas tristes, mesmo quando a nosso lado, sempre estão ou parecem distantes. Assim corre e não corre a minha vida! De esplanada em esplanada, outras cenas e emoções. Pouco depois deste desencontro, uma tocante surpresa. Fico contente quando encontro pessoas que há muito tempo não via e que ainda me reconhecem e dirigem bons olhares e sorrisos, boas palavras e interrogações...Assim aconteceu, naquela manhã de domingo, 11 de Junho, numa esplanada de Celas, que outrora habitualmente frequentava, ao cruzar-me com duas distintas dirigentes dos serviços universitários. Momento breve mas tão marcante que me arrastou para tantos momentos e sensações daquele passado em que a Universidade - a "boa e velha universidade" - representava o meu mundo principal, naqueles tempos em que éramos jovens e atrevidos e nos julgávamos felizes.

Regresso, sem pressas, à esplanada anterior, onde passo e deixo grande parte dos meus dias, quase sempre na mesma mesa. Observo quem vem e quem vai. Através dos outros, observo-me a mim próprio. Escrevo, ou leio revistas e jornais. E alguns livros admiráveis, entre eles “Dez Horas de Memória” e "Rua do Almada e outros contos" de Jorge Fragoso. Assim levo a vida, assim a vida me leva! Em Coimbra mais me lembro de Castelo Branco e das longínquas e doces manhãs em que cantavas, talvez com vontade de chorar: "Senhora do Almurtão/ para lá vou eu andando/ minha alma já lá está/ meu coração vai chegando...".

 

COMENTÁRIOS

JMarques
No ano passado
Não sei se o rir faz bem à saúde, mas à alma faz.