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Digressões Interiores: Olha a laranjinha que caiu caiu…

João Lourenço Roque - 22/07/2023 - 8:00

Reconheço que exagero na visão pessimista que, demasiadas vezes, lanço sobre o presente e o futuro das nossas aldeias.

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Reconheço que exagero na visão pessimista que, demasiadas vezes, lanço sobre o presente e o futuro das nossas aldeias. Talvez pelo que vejo e sinto nos Calvos e em outras “terreolas” das freguesias de Sarzedas e de Santo André das Tojeiras, esquecendo-me de que há sinais bem contrastantes e promissores em algumas localidades. Lembro vários casos de “repovoamento”, por parte dos ingleses e de outros estrangeiros; assinalo os “sabores da vila condal”, as praias fluviais muito aprazíveis e concorridas, sobretudo a do Sesmo, e destaco alguns polos bastante dinâmicos, desenvolvidos e atraentes. Entre eles, avulta São Domingos. Terra que não para de me surpreender, por múltiplas razões. Penso nos cafés acolhedores e nas pequenas mas conceituadas unidades industriais e comerciais, ali instaladas desde longa data. Penso ainda mais na recente novidade da já famosa “mercearia d’aldeia”, criada pela jovem e criativa Filipa Nunes. Só me espanta que ninguém ainda se tenha aventurado na instalação de um restaurante, com piscinas e discoteca. Acima de tudo, penso nas pessoas que por ali avisto. Gente, muita gente, de várias origens e de todas as idades. Idosos como eu, adultos de meia idade, jovens e crianças em grande número e de muitos encantos. Hoje em dia, gosto muito de ir a São Domingos, mas também ao café da prima Lucrécia – onde se falam e aprendem várias línguas – na Lomba Chã que, embora numa escala mais reduzida, também aponta para o futuro. Do passado é que eu não saio. Falei de São Domingos e logo me achei outra vez menino, de dez anos, a caminho da escola na 4ª classe. A capela, erguida num lindo planalto, nunca me esquece, nem os sinos que se ouvem e nos chamam à distância de uma légua. No quadro regional em que se insere, São Domingos faz figura de “capital” e de “grande metrópole”. Sempre que lá vou parece-me que vou ao “estrangeiro”, mesmo sem passaporte…

É bem verdade que o ambiente – físico, psicológico e cultural -, que nos rodeia, marca e condiciona profundamente os nossos hábitos, interesses e comportamentos. De tanto tempo passar nos Calvos, quase deixei de ser o “urbano” que tanto fui. De boa ou de má vontade, vou na onda e nas conversas dos vizinhos. Gente boa e simples, embora mais “manhosa” do que se imagina, quase desligada dos grandes e complicados mundos exteriores. Gente que não sabe nem quer saber que “coisas” sejam “SIS”, “bolha mediática”, “bolha imobiliária”, “CEO”, “chairman”, “5G”, “teletrabalho”, “algoritmo”, “inteligência artificial”, etc., etc. No rame rame de cada dia, o que mais interessa é cuidar da horta, espreitando se bem nasceu tudo aquilo que amorosamente se semeou. E tratar das cabras que já pariram ou que estão à beira de parir, na volta da lua. Quando toca a reunir em grupo e a conversar, lá vem um que diz ter visto um coelho ou uma lebre; lá vem outro que confessa ter espantado um texugo ou uma raposa; lá vem um terceiro que garante que os cães toda a noite ladraram, mas que só se apercebeu de um vulto esquisito, a esgueirar-se na direcção da fonte. Insiste o primeiro, ou o segundo, que avistou um gato montês e que fugiu de um cobrão, medonho e assanhado. Alguns permanecem calados, sem saber que episódios ou mentiras relatar. Quando possível o tempo prolonga-se e arrasta-se, outras vezes muda tudo de repente. Basta um afastar-se para que todos comecem a desabelhar, cada qual para seu lado. As mulheres mais se apressam quando ouvem a buzina do peixeiro. Como se torna claro, por aqui quase ninguém fervilha na moda, nos gostos e no “vício” das “redes sociais”. Em vez disso, ligam-se à corrente das gerações passadas e “ressuscitam” lendas, histórias e sentenças que “correram mundo”. De entre as muitas que poderia repetir (talvez as guarde para outras oportunidades), limito-me a uma que documenta a preocupação das famílias mais abastadas em assegurar namoros e casamentos entre iguais. Conta-se que o pai de uma “morgada” das Teixugueiras, expedito em boas e belas metáforas, correu com um pretendente “que queria o Brasil sem atravessar águas do mar…”.

Com estas ou com outras conversas, com estas ou com outras histórias, gosto de estar aqui, apegado a lembranças intactas ou esfarrapadas. Com pouco – ou com muito? – nos alegrávamos na aldeia. Bastava-nos a chegada das andorinhas que, em cada ano que vinham, nos traziam e deixavam um “sinal de eternidade”…”. Gosto de estar aqui, repito. Tão perto ou dentro de Castelo Branco, onde podemos arranjar outras vidas e recorrer a instituições de saúde, dotadas com profissionais gentis e dedicados, sempre prontos a valer-nos nas nossas maleitas e aflições. Bem o posso dizer, tendo em conta o exemplo das enfermeiras do “Centro de Saúde de S. Tiago” que, em Maio, me trataram de uma queimadura na perna direita. Gosto de estar aqui, insisto. Acomodado ou inquieto. Sempre a viajar pelos tesouros e feitiços da Beira Baixa. Tantas vezes através da música. Agora, agarrado a um CD do Rancho Folclórico de Monsanto, que há muito procurava e que finalmente alcancei, graças às diligências do amigo Nuno Torres. Música espantosa e emocionante! Ai as vozes das mulheres e as mãos ligeiras nos adufes! Ai os adufes que soam e ficam no coração e na alma! Volto a mim, aos meus caminhos tão confusos e incertos. Nem o vento, nem as pedras, nem a água, nem os teus olhos me dizem quando tornaremos a Monsanto! Quero e não quero ficar aqui, no eco da tua voz e dos teus passos. Quero e não quero ficar aqui, preso a tantas coisas e recordações naquele tempo em que dava gosto ouvir-te cantar: Olha a laranjinha que caiu caiu…num regato d’água nunca mais se viu.

Coimbra, Julho de 2023

COMENTÁRIOS

JMarques
No ano passado
Como estas explanações me transportam aos locais e às vivencias da minha meninice.
CZ/ORV/OLR/CB/50/60.