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Os incêndios, a paisagem e a intervenção humana

Paula Reis - 18/08/2023 - 11:21

A Gardunha da minha infância era muito diferente da que vejo hoje. Tinha tantos pinheiros que os cabeços (pedras) nem assomavam.

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A Gardunha da minha infância era muito diferente da que vejo hoje. Tinha tantos pinheiros que os cabeços (pedras) nem assomavam. Tinha caruma que as pessoas iam apanhar para fazer a cama dos animais, tinha pinhas e lenha miúda para atear as lareiras, tinha potes de barro a apanhar a resina.

No outono, tinha muitos míscaros e frades e em dezembro íamos apanhar musgo e um pinheiro pequeno para enfeitar e alegrar a quadra.

Os ribeiros tinham lavadouros e a roupa branca punha-se a corar em cima das giestas para não tocar no chão.

O primeiro incêndio, no final dos anos setenta, assustou tanto as pessoas que muitas pegaram no dinheiro, no ouro e nos filhos e fugiram para a Soalheira.

No segundo incêndio, enquanto ardia a Gardunha ardia também o Chiado. Ardeu a horta da minha mãe e todas as que ficavam no sopé.

A partir daí, mais perto ou mais longe, o fenómeno dos incêndios vulgarizou-se, bem como as teorias da conspiração: «são os madeireiros», «querem comprar os terrenos baratos» querem plantar eucalipto», «querem pôr eólicas» …

Ao mesmo tempo, as máquinas de lavar entraram em quase todas as casas, a resina deixou de ser recolhida, as camas dos animais passaram a ser forradas a palha. Ao pinhal juntaram-se os eucaliptos, as mimosas, as estevas, o palhiço.

Os fogos ganharam dimensão porque há muito mais combustível, os terrenos passaram a ser desconhecidos dos donos que os herdaram, os braços que ajudavam a apagar fogos com enxadas envelheceram.

Da leitura de um artigo na revista Brotéria, na sua edição de 1910, percebi que a nudez da serra da Gardunha, nessa altura, era quase total:

«Primeiro os matteiros carvoeiros ou lenhadores, depois dente damninho dos gados foram-lhe destruindo arruinando os mattos pastagens que, além de enriquecerem solo com os seus detritos, serviam como de freio defesa contra impetuosidade devastação dos agentes externos, segurando, sobretudo com seu raizame, camada terrea que envolvia as massas graníticas. Iloje quasi nada resta daquella vegetação, que revestia outr’ora aquelles sitios até aos pincaros encostas mais íngremes. Nem rosmaninhos, estevas, sargaço ou carquejas, nem as giestas.» Por isso o autor do artigo mostrava entusiasmo pelo regime florestal parcial daquela área em que se viria a introduzir o pinheiro e o eucalipto.

Passado mais de um século, as espécies florestais semeadas, o uso humano e as condições climatéricas deixaram-nos o combustível para os incêndios de sexta geração: longos períodos de tempo seco, muita matéria inerte, floresta desordenada e constituída maioritariamente por resinosas.

Os meios de combate a incêndio diversificaram-se e multiplicaram-se, mas não podem ser elevados ao infinito.

Aqui chegados, há uma conclusão óbvia: temos de reinventar a floresta.

A que existe é mais ameaça que rentabilidade, mais desesperança que modo de vida.

Na última intervenção na Assembleia da República, o Ministro do Ambiente afirmou: «Não podemos ter monoculturas florestais a ocupar vastas áreas do nosso território, sem interrupções e sem mosaicos. É por isso que estamos a executar o Programa de Transformação da Paisagem, que inclui quatro medidas programáticas: os Programas de Reordenamento e Gestão da Paisagem; as Áreas Integradas de Gestão da Paisagem; os Condomínios de Aldeia e o Programa “Emparcelar para Ordenar”.»

Na mesma intervenção foi dado a saber que o novo PEPAC terá disponível um pacote financeiro para as medidas de investimento na produção florestal ascende a 274,5 milhões de euros, com candidaturas a iniciar em 2024.

O registo da propriedade através dos BUPI ou a resolução de problemas como o das heranças indivisas constituem-se como fulcrais para poder executar uma planificação e gestão do território que proteja vidas e investimentos.

Para levar a cabo esta reforma, apenas precisamos de vontade e de gente.

O que fizemos nos últimos anos tem dado azo a uma escalada na dimensão das catástrofes.

O que temos de fazer agora é fazer diferente e coordenadamente.

A pensar na floresta que queremos no futuro.

COMENTÁRIOS

JMarques
No ano passado
Nesse tempo havia disciplina e responsabilização.
Quanto às declarações do Ministro do Ambiente na AR, mais valia estar calado, porque a hipocrisia e a incoerência falam por si, pois, acaba de autorizar o abate de 1.821 sobreiros no Alentejo (Sines), para instalar uma central fotovoltaica, será que não havia um local sem árvores?
JMarques
No ano passado
?
JMarques
No ano passado
Isso era no tempo m que havia responsabilidade e responsabilização.
Quanto às declarações do Ministro de Ambiente na Assembleia da República, mais valia estar calado, porque não tem "autoridade" para isso, quem autoriza a abate de 1.821 sobreiros em Sines, para construir uma central fotovoltaica, como se não houvesse outro local sem árvores para a sua construção, só tem autoridade para estar calado e ter vergonha de sair à rua.