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Leitores: Castelo Branco. Como? Biblioteca Municipal ?

Leonel Azevedo - 24/08/2023 - 10:24

A certidão de baptismo da biblioteca de Castelo Branco tem a data de 1834, mas reporta-se apenas à portaria régia...

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A certidão de baptismo da biblioteca de Castelo Branco tem a data de 1834, mas reporta-se apenas à portaria régia, o verdadeiro nascimento de entidade tão promissora só aconteceria 30 anos depois, quando o médico José António Morão doou a sua biblioteca particular à cidade (cerca de 3.200 volumes). Qual Moisés, o recém-nascido foi abandonado, não nas águas do Nilo, mas na indiferença dos governantes locais: não lhes interessavam as letras e a biblioteca pública não tinha outro estatuto que não fosse o de um nado morto cujos livros se guardavam em arrecadações camarárias, aqui e acolá, ao deus dará. Durante anos, a vida dela resumia-se à disputa entre o liceu e a câmara, cada qual a reclamar o acervo. À  colecção livresca do Dr. J. A. Morão juntou-se a da Mitra (que reunia um conjunto muito incompleto das bibliotecas conventuais do distrito) — ambas ainda hoje perfazem o mais rico acervo de livro antigo da biblioteca municipal. A má sina perseguiu esta instituição desde a sua criação: só em 1911 teve a sua primeira catalogação e só em 1940 o seu primeiro director. E podemos afirmar que foi o Estado Novo que a fez Biblioteca, digna de esse nome. Depois da revolução dos cravos, a sua existência pode comparar-se à do judeu errante, para chegar aos dias de hoje instalada em um belo edifício, mas cuja orientação e direcção está ao nível dos primeiros anos do século XX. De facto, teve os nomes de Biblioteca Pública, Biblioteca Popular, Biblioteca Municipal de Castelo Branco e, a partir de 1984, o de Biblioteca Municipal Jaime Lopes Dias. 
Ora, mas o poder político e a comunicação social precisam, semanalmente, de um cartaz rico, variado e se possível, sensacional, para entretenimento público. A sensatez fez-lhes a vontade: adormeceu em pleno hemiciclo e vai os deputados da assembleia municipal e o elenco camarário, quais assembleias do Olimpo na terra, sem pestanejar e todos à uma, atribuem um novo nome à Biblioteca Municipal de Castelo Branco. Sim, novo. O resumo é este: A 23 de Abril de 1984 inaugurou-se uma “sala Jaime Lopes Dias”, na qual figurava um busto e alguns retratos do homenageado, tudo na companhia de um enorme acervo documental deixado pelo autor à biblioteca municipal albicastrense: cerca de 2.000 volumes e 3.000 manuscritos. E, no mesmo dia, no acto de inauguração e perante os filhos do homenageado e os presentes, o presidente da Câmara de Castelo Branco comprometia a sua palavra e afirmava que seria a própria Biblioteca Municipal a receber o nome de Jaime Lopes Dias. As consequências de essa decisão são bem conhecidas de quem investiga ou simplesmente frequenta a dita instituição: para darmos apenas um exemplo, talvez 2/3 da catalogação das colecções da biblioteca ostentem o carimbo com a designação: “Biblioteca Municipal Jaime Lopes Dias”. Por isso, repugna, é eticamente irresponsável, que pessoas que conduzem os destinos desta pobre cidade, mais a falange de apoiantes (familiares e admiradores) de António Salvado se regozijem e assinalem a atribuição do seu nome à biblioteca como um prémio justo ou uma recompensa merecida. Na verdade, não é uma coisa nem outra. Muito menos se tais atributos se conseguem espezinhando a memória e a obra de Jaime Lopes Dias — figura que, quer se queira quer não, surge em primeiro lugar no plano cultural de todo o século XX, na cidade. Não só pela sua invulgar e extensa obra, mas pela luta que travou junto dos poderes (local e central) e os benefícios que alcançou para a cidade e para a região. Custa-me acreditar que as pessoas letradas que a política arregimenta para os cargos públicos, mais os admiradores e familiares do homenageado actual, não soubessem (tão claro quanto eu ou outro — já não digo leitor — pelo menos frequentador assíduo da biblioteca) deste estado de coisas. Por isso, a homenagem, promovida pelo conjunto de pessoas que à volta da figura de A. Salvado se reuniram, significa tão só a usurpação de um nome que, do meu ponto de vista, é dos menos merecedores de tal traição mesquinha, oportunista e leviana. Riscaram o nome de Jaime para escreverem o de António — se foi por ignorância, ainda é desculpável e podem corrigir o erro; se foi com conhecimento de causa, escuso-me escrever os adjectivos que classificam o acto (para não ter de ir à barra do tribunal defender a minha liberdade de pensamento). 
Por mais que custe ouvir aos admiradores do poeta António Salvado, a sua obra, por enquanto, não tem outro estatuto que não a de um poeta menor, regional em relação ao panorama da poesia portuguesa contemporânea. A admiração de um grupo de pessoas não engrandece a obra nem é sinal da sua qualidade, como querem fazer crer aqueles que a sopram aos píncaros do Parnaso, nem a minha opinião — de que ela afina pelo acorde menor dos cultores da arte — vale como juízo verdadeiro dela. A obra só agora entrou na sua fase decisiva, separou-se do seu autor e de toda a ganga mundana que a urde e tece: é o tempo futuro que a há-de julgar e determinar o seu real valor. É ele que decidirá se entra na história da literatura portuguesa ou se nem uma nota de rodapé dela lhe está destinada. Aquilo que os admiradores da obra de António Salvado deviam fazer é, tão só, divulgá-la, dá-la a conhecer ao maior número de pessoas possível — e nisto a Câmara tem feito aquilo que nunca fez com outro autor da região: tem encarado a proposta como uma missão. Desde a criação de um prémio com o seu nome até ao acto sacana de rebaptizar a biblioteca. Mas podem até dar o seu nome à pastelaria onde ia lanchar, à padaria onde comprava o pão, ao talho onde comprava o bife ou ao guarda-chuva que o abrigava das intempéries, tudo isso é absolutamente regional, secundário, quanto ao aspecto fulcral que está em jogo: a sua poesia. E o facto de os fãs estarem preocupados unicamente com a satisfação dos aspectos exteriores à obra, isto é, o perdurar do nome a todo o custo, não abona nada para alguém se aproximar dela e experimentar o seu timbre, o seu aroma, a sua voz. Porque tudo isso labora em uma enorme confusão: o poeta nunca existiu, não tem corpo, peso, altura, nem bilhete de identidade. Quem o tem é o ser prosaico e mundano, com as suas qualidades e os seus defeitos, António Salvado — ou qualquer outro nome que se dedique à arte das Musas. O melhor prémio que qualquer poeta desejaria obter chama-se “leitor”, caso contrário não pensa como poeta, mas como ser humano preso aos valores mundanos: às condecorações, aos prémios literários, às homenagens, à popularidade, tudo matéria secundária e superveniente em relação à poesia. Tudo isto está dito, escrito e repisado vezes sem conta, desde os românticos ingleses. Porque, parece-me claro, os admiradores (e a “malinha de mão” do poder local) aspiram substituir tudo pelo nome e, deste modo, ele deixa de ter qualquer referência à poesia e passa a ser uma marca registada. Tal e qual como aquilo que aconteceu ao vate nacional, Luiz Vaz de Camões, nas festas do tricentenário de 1880: em Lisboa, produziram-se artigos das mais variadas espécies, desde as “bengalas à Camões” até às “canetas à Camões”. Para cúmulo, até um taberneiro galego tinha no seu estaminé de comes e bebes “carapaus à Camões”! E o que eram os carapaus à Camões? Eram carapaus fritos aos quais o sabichão precoce de marketing tinha arrancado um olho!   
O nome de A. Salvado perdurará se a poesia vencer, caso contrário será, como tem acontecido com tantos endeusados em vida pela miopia dos seus admiradores, amigos e familiares: pasto favorito do esquecimento.    
Só duas considerações adicionais dirigidas aos senhores políticos, empregados de partidos munidos de contrato de trabalho válido por 4 anos (quando não lhes é encurtado): os serviços públicos municipais não têm de ter baptismo além da designação oficial. É mesmo um sinal saloio, provinciano e arrogante dar-lho. Ninguém, felizmente, se lembrou de dar nome à Câmara Municipal de Castelo Branco (e sei que se o fizessem, a memória e os conhecimentos da classe política não iam além dos nomes de algum presidente do Estado Novo, se é que chegava tão longe!) e, no entanto, as justiças e administração municipais existem nesta, então vila e agora cidade, desde 1213. Ninguém se lembrou, até à data, de dar nome a serviços públicos idênticos: o Tribunal Judicial, o (famigerado) Governo Civil, a Polícia Municipal (que hoje já se não chama assim), o Matadouro Municipal, as Repartições de Finanças e por aí fora. Do mesmo modo ninguém ousou dar nome de pessoa ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, à Biblioteca Nacional ou à Universidade de Coimbra. E quantos génios, ou simplesmente pessoas de gabarito e grandeza intelectual e moral, passaram por essas instituições e deram a sua vida por elas! Dar nomes de pessoas a instituições que prestam serviços públicos corresponde a uma nova entrada no dicionário da pequenez humana. Porque as instituições trazem no nome a expressão da comunidade que representam: se é uma comunidade municipal, regional, nacional, internacional, mundial. Ou seja, dar nome de pessoa a uma instituição, a qual não tenha nascido da livre e espontânea vontade de um particular (como as fundações, os museus, as escolas, etc. espalhadas pelo país fora com o nome dos seus mentores e financiadores principais), significa somente duas coisas: bajulação e vaidade. Predicados que muita gente adora e o poder político, em geral, estima e promove. Se algum nome de pessoa a biblioteca municipal pudesse ter, se fosse escolhido com algum critério e justificação histórica, seria o do médico José António Morão — que, independentemente da inércia e incompetência do poder local para a criar, doou a sua extensa e interessante biblioteca pessoal, a fim de acudir a uma necessidade e colmatar uma falta, na caduca urbe albicastrense oitocentista. 
Atribuir e manter o nome atribuído, nas condições em que se fez, tem apenas um significado: envergonhar os autores da proeza e o próprio nome escolhido cujo troféu se ergue sobre o cadáver de Jaime Lopes Dias. 

Leonel Azevedo

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JMarques
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O hipócrita e repugnante mundo da politica.